O Preto por outra ótica

O Preto por outra ótica

Ser Mc é uma grande Responsabilidade, E não é pra menos, nada mais justo que a expectativa seja alta sobre alguém que se autointitula “mestre”, é esperado que tenha algo a se aprender com um mestre, isso exige do bom MC que seja um portador de conhecimento. Originalmente o Mestre de Cerimonia servia como uma espécie de mediador, um guia entre as musicas do DJ e o publico, armados de conhecimento e palavras afiadas os MCs tornaram sua voz cada vez mais poderosa com as batalhas.

E muitos se destacaram em confrontos duradouros entre grupos rivais.

Mas para mim a parada mais importante do MC ainda está em ser um guia.

O guia abre caminhos, aponta a direção, orienta o coração pro que realmente importa, com medo para enfrentar nossos medos e monstros.

E segurança para ser quem voce realmente é, e não quem esperam quem voce seja.

Como se encontrar nesse caminho sem ser engolido por ele? Como mudar o mundo ao seu redor?

A missão é guiar cada ouvinte ao seu destino.

Pra alguns isso significa enfrentar seus maiores medos.

  • SoundTrack, Rashid e Match, 2023, Editora JBC

Enquanto lia as ponderações de provavelmente um dos maiores MCs da cena sobre o seu próprio ofício, na HQ SoundTrack, não pude deixar de pensar como essa ótica escapa do ofício e se integra ao próprio Preto em si. As mesmas questões aparecem nos novos quadrinhos do Miles Morales e do Super Choque.

Nosso amigo Miranha tem o velho dilema de grandes poderes e grandes responsabilidades, mas com uma pegada muito diferente do Peter. Dessa vez, vemos um Homem-Aranha que se julga, que se cobra mais do que tudo, que é o próprio algoz e só para quando quase perde tudo e literalmente não aguenta mais, desmaiando, se perdendo, para assim se encontrar.

No segundo Virgil, após ganhar poderes elétricos, começa a ponderar sobre a sua própria identidade e seu lugar no mundo, além de tentar não ser consumido pelos novos poderes, como uma legião de pessoas sub apreciadas foram.

Você provavelmente conhece "Sobrevivendo no Inferno" dos Racionais MCs, um dos álbuns mais famosos do rap e talvez da música. Esse álbum, lançado em 1997 pelo grupo de rappers, que já estava nas ruas de São Paulo desde 1992, os consolidou como um dos grandes símbolos do hip hop nacional e, sinceramente, arrisco dizer, mundialmente aclamados pela crítica e pelo público. Foi nomeado o 14º álbum mais importante da música brasileira pela Rolling Stones e suas letras se tornaram livro, inclusive entrando para o vestibular. Portanto, é fácil entender a perspectiva da maioria, esse álbum é um dos mais importantes do rap, do Brasil e do mundo.

Mas e se eu te disser que esse álbum não é o mais importante da carreira deles?

Para entender essa lógica, precisamos analisar algumas perspectivas diferentes.

O primeiro é o ponto de vista do artista. Para nós, consumidores, é muito fácil nos conectarmos com a vida e experiência de um artista. No entanto, é importante dividir a visão do público e a visão do artista. Para entrarmos nessa visão, precisamos falar primeiro sobre a concepção de "Sobrevivendo no Inferno".

Como mencionei, o grupo já estava na estrada em São Paulo desde 1992, ganhando certa fama e notoriedade, fazendo muitos shows e sendo a face do rap na época. Mas com o sucesso e a fama, também vieram todas as feridas sociais mais expostas que podemos ter. Nas palavras deles: cada vitória vinha acompanhada de uma derrota, e eles tiveram muitas. Desde a morte de um filho de um dos membros até acidentes e falta de dinheiro. Além disso, eles constantemente testemunhavam agressões sociais contra familiares, amigos próximos, fãs e colegas do movimento.

Isso fez com que eles vivessem um período de grande luto que acabou originando o álbum. Nas palavras de Mano Brown, "foi um álbum gótico". Aqui, é importante definir o que queremos dizer com "gótico". Não estamos nos referindo a um estilo de vestir, mas a um estilo de arte que exalta a tristeza como parte do processo de vida. Esse estilo foi muito utilizado na Idade Média e é definido por fontes muito específicas desse período, exaltando o religioso cristão e imagens com formas pontiagudas, vinda dos Godos. Essa arte traz o brusco em várias composições, inclusive introduzindo as famosas gárgulas que eram feitas para escoar água, mas também para repelir espíritos malignos. Se analisarmos a capa e a estrutura do álbum, veremos que elas seguem todas essas questões, desde o álbum preto e vermelho, com uma cruz em formato pontiagudo, até as citações bíblicas para proteção na capa e no verso do álbum. "Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo;" Salmos 23:4.

O álbum em si também segue uma estrutura semelhante a um verso bíblico, o que é extremamente importante, não apenas pelo aspecto gótico, mas também para a conexão de uma região marginalizada em crescimento, cada vez mais conectada a uma religião emergente, o evangelismo.

Devido a toda essa estética que usa a raiva do preto de uma forma mais universal para ir contra o sistema, o álbum alcançou lugares incomparáveis, sendo comparado em termos de composição e estrutura com "Sgt. Pepper's" dos Beatles.

Se você prestou um pouco de atenção na minha introdução, pode ter percebido a ideia de que esse álbum foi abraçado por todas as camadas do sistema, não apenas pelos pretos, não apenas pelas favelas. Isso fez com que o grupo como um todo confrontasse ideias distorcidas do que o próprio álbum representava e, no final, depois de tantos dilemas, entrasse em hiato.

Nas palavras de Mano Brown: "Quem gosta desse álbum é universitário, é professor" (referindo-se provavelmente à questão do vestibular da Unicamp).

"Esse álbum nos afastou da favela".

E é nessa ruptura que proponho o pensamento de que o álbum foi literalmente a ruptura de toda a marginalização imposta ao longo dos anos, mas essa mesma ruptura fez com que eles se afastassem de suas próprias raízes, ou nas palavras de Rashid: "Engolidos pelo caminho que tentavam se encontrar".

Em 2002, o grupo retorna do hiato com o álbum "Nada como um dia após o outro". Nesse ponto, acredito que o grupo se revitaliza de várias formas, a principal delas sendo a reconexão deles com eles mesmos e com a favela. O álbum ainda tem o ódio, necessário como combustível do rap, mas dessa vez não é condensado pela morbidade do mundo ao seu redor, e sim usado como cola para unir o indivíduo, a favela e o movimento de oposição como uma força só, como se fossem corpo, mente e espírito.

Além disso, as músicas têm mais camadas, mais referências, como artistas internacionais, filmes e obras, para levar o público a conhecer mais, sair da bolha. Isso se tornou uma tendência para muitos MCs posteriormente.

Podemos perceber isso em faixas:

Negro Drama - Racionais Mc

Nego drama

Entre o sucesso e a lama

Dinheiro, problemas, invejas, luxo, fama

Nego drama

Cabelo crespo e a pele escura

A ferida, a chaga, à procura da cura

Nego drama

Tenta ver e não vê nada

A não ser uma estrela Longe, meio ofuscada

Sente o drama

O preço, a cobrança

No amor, no ódio, a insana vingança

Nego drama

Eu sei quem trama e quem tá comigo

O trauma que eu carrego

Pra não ser mais um preto fodido

O drama da cadeia e favela

Túmulo, sangue, sirene, choros e velas

Passageiro do Brasil, São Paulo, agonia

Que sobrevivem em meio às honras e covardias

Periferias, vielas, cortiços

Você deve tá pensando

O que você tem a ver com isso?

Desde o início, por ouro e prata

Olha quem morre, então

Veja você quem mata

Vida Loka Parte 2 (Uma aula prematura ao movimento Ostentação)

'Xô falá pro'cê

Tudo, tudo, tudo vai, tudo é fase irmão

Logo mais vamo arrebentar no mundão

De cordão de elite, 18 quilates

Poê no pulso, logo um Breitling

Que tal? 'Tá bom?

De lupa Bausch & Lomb, bombeta branco e vinho

Champagne para o ar, que é pra abrir nossos caminhos

Jesus Chorou

O que é, o que é?

Clara e salgada,

Cabe em um olho e pesa uma tonelada

Tem sabor de mar,

Pode ser discreta

Inquilina da dor,

Morada predileta

Na calada ela vem,

Refém da vingança,

Irmã do desespero,

Rival da esperança

Pode ser causada por vermes e mundanas

E o espinho da flor,

Cruel que você ama

Amante do drama,

Vem pra minha cama,

Por querer, sem me perguntar me fez sofrer

E eu que me julguei forte,

E eu que me senti,

Serei um fraco quando outras delas vir

Se o barato é louco e o processo é lento,

No momento,

Deixa eu caminhar contra o vento

Do que adianta eu ser durão e o coração ser vulnerável?

O vento não, ele é suave, mas é frio e implacável

(E quente) Borrou a letra triste do poeta

(Só) Correu no rosto pardo do profeta

Verme sai da reta,

A lágrima de um homem vai cair,

Esse é o seu BO pra eternidade

Diz que homem não chora,

Tá bom, falou,

Não vai pra grupo irmão aí,

Jesus chorou!

Aqui é onde toda a retórica de Rashid se encontra, inclusive ele e Emicida seguiram caminhos similares ao grupo, Emicida com "Emicídio" e "Amarelo" e Rashid com toda a sua obra, basicamente, e depois com o "Tão Real" e "Movimento Rápido dos Olhos".

Minha intenção aqui não é colocar o rap ou o preto como algo binário, do tipo, vai ser sempre isso e depois aquilo. Apenas acho interessante porque, como uma pessoa preta que ascendeu, caiu e se reconectou, comparo a trajetória com esses padrões de álbuns e entendo o quão normal isso pode ser.

Isso também reflete na criação de personagens pretos mais convincentes, como Pantera Negra e Killmonger, dois personagens do antigo e já legado MCU (Universo Cinematográfico da Marvel). Se observarmos:

  • Eles já tinham um problema que os preenchia:

    • T'Challa com a questão do legado do pai e se fazia sentido uma Wakanda conservadora.

    • Killmonger com a questão de ter toda a herança da história preta e revolta contra Wakanda.

  • Usaram esse problema para alcançar seus postos:

    • T'Challa se tornou o Rei, o Pantera Negra, e decidiu fechar Wakanda.

    • Killmonger derrotou T'Challa e assumiu o trono de Wakanda.

  • Se desconectaram de si mesmos e de sua origem:

    • T'Challa perdeu o posto de Pantera.

    • Killmonger não se conectou com ninguém de Wakanda, reinando pelo medo.

  • Se reconectaram consigo mesmos e seus ancestrais:

    • T'Challa se reconectou com sua ancestralidade como Pantera.

    • Killmonger, ao perder para T'Challa, pediu para ser jogado no mar, para se reconectar aos ancestrais.

  • Usaram a reconexão para transformar o mundo ao seu redor:

    • T'Challa usou sua conexão com Killmonger e com a ancestralidade para abrir Wakanda e ajudar povos pretos ao redor do mundo.

Essa última parte se encaixa na reconexão desses últimos álbuns. E se você acha que isso parece com "O Herói de Mil Faces" de Joseph Campbell, bom, talvez seja porque tenha suas semelhanças:

"O Herói de Mil Faces" é um livro que apresenta a teoria do arquétipo do herói e discute como essa teoria pode ser aplicada em diversas lendas, culturas e mitologias. Ele conta com os seguintes passos:

  1. Partida, separação:

    1. Mundo cotidiano.

    2. Chamado à aventura.

    3. Recusa do chamado.

    4. Ajuda sobrenatural.

    5. Travessia do primeiro limiar.

    6. Barriga da baleia.

  2. Descida, iniciação, penetração:

    1. Estrada de provas.

    2. Encontro com a Deusa.

    3. A mulher como tentação.

    4. Sintonia com o pai.

    5. Apoteose.

    6. A grande conquista.

  3. Retorno:

    1. Recusa do retorno.

    2. Voo mágico.

    3. Resgate interior.

    4. Travessia do limiar.

    5. Senhor de dois mundos.

    6. Liberdade para viver.

Cada uma dessas sub etapas é um passo na jornada do herói, e gostaria de olhar como nossos heróis do dia a dia se encaixam em algum nível dessa lista:

  1. Partida:

    1. O mundo já é um chamado para a aventura:

      1. Aqui, acredito que a maior diferença dos heróis e heroínas pretos é que o próprio mundo em que ele existe o leva a alguma forma de mudança, não sendo necessária uma grande ocorrência para isso.
    2. Ódio ao chamado:

      1. É muito fácil ver nossos heróis sendo impelidos pela ira ou angústia a rejeitarem o chamado.
    3. Apoio sobrenatural:

      1. Aqui temos uma divergência, pois nessa etapa o sobrenatural é um apoio em vez de uma ajuda direta. Podemos citar, por exemplo, o cristianismo, o candomblé e até mesmo alguns guias de religiões orientais, como o taoismo.
    4. Travessia do primeiro limiar:

      1. Resume-se em viver, chegar ao topo, alcançar o sucesso.
    5. Barriga cheia:

      1. Aqui surgem algumas questões, como o custo do sucesso, quais são os verdadeiros ideais do herói e se ele está afastado daqueles que realmente o amam.
  2. Descida, iniciação, penetração:

    1. Estrada de provas:

      1. O herói preto já tem uma estrada cheia de provas ao longo de sua jornada, mas aqui chegamos ao nível em que tudo se reflete nele, e a falta de base começa a provar.
    2. Sintonia com o pai:

      1. Nesse momento, a figura paterna entra de várias formas. Aqueles que tiveram a chance de tê-la lembram dela como uma figura a se distanciar ou a alcançar. Aqueles que não a tiveram começam a entender o reflexo disso e como quebrar o ciclo.
    3. Apoteose:

      1. É aqui que normalmente eles se estabelecem na história, conectando-se à ancestralidade. Da mesma forma que os antigos gregos ascendiam ao panteão, os pretos ascendem à ancestralidade, a Wakanda, ao Mayombe e às favelas.
    4. A grande conquista:

      1. Aqui, os pretos lançam suas melhores conquistas, superando a dor e as correntes.
  3. Retorno:

    1. Resgate interior:

      1. Ao quebrar as correntes do sistema, o ódio e a inveja, os pretos enxergam a si mesmos e solidificam toda a ancestralidade e comunidade que os trouxe até aqui.
    2. Senhor de dois mundos:

      1. E aqui, eles podem viver entre o topo, mas nunca abandonam a base. O luxo e o lixo, sabendo onde sangram, mas também fazendo o possível para que não sangrem mais.
    3. Liberdade para viver:

      1. E com isso, eles se libertam da noção de artista e herói que lhes é atribuída, para terem a liberdade de viver como seres humanos falhos, sem precisarem ser reféns daquilo pelo qual tanto lutaram para eliminar.

Este texto visa mostrar como grandes pretos e pretas da história passaram por temas semelhantes, desde Racionais, Rosa Parks, Martin Luther King, Malcolm X, T'Challa e Killmonger. Isso de forma alguma os reduz a um estereótipo, mas mostra como o mundo e a sociedade trabalham tão bem para nos moldar a ser algo que na verdade não somos, e talvez a como lutar por algo que nós queiramos ser.

Muito Obrigado por ler até aqui, esse texto foi extremamente denso de redigir, e muito mais importante de condensar todas as referencias e pensamentos! Por isso agradeço a todos da referencia bibliográfica a seguir, se puderem e quiserem deem uma chance para cada uma dessas obras listadas, elas são literalmente fantásticas!

Bibliografia